Tiro os fones de ouvido para entender o que ele está falando.
- Você assistiu ao clássico de ontem? – ele repete olhando para mim pelo retrovisor.
Como se já não bastasse estar interrompendo meu momento de solidão voluntária, ele ainda se atreve a me perguntar algo de que não entendo.
- Clássico?
- O jogo. Para que time você torce?
Ah, certo. Ele está falando de futebol, que obviamente é o primeiro assunto que você deseja discutir numa segunda cedo indo para o trabalho.
- Corinthians – respondo, consciente de que eu posso ter acabado de colocar a minha vida em risco. Observo a expressão nos olhos dele e respiro aliviado. Talvez ele seja corintiano também. – Não assisti ao clássico ontem, não – completo, voltando a colocar os fones de ouvido e olhando para o celular, tentando encerrar o assunto.
Tiro os fones de ouvido novamente.
- Sou vascaíno. Meu pai é do Maranhão e a minha mãe de Brasília.
- Ah, legal – respondo, percebendo que não vou me livrar tão fácil dessa interação social inesperada.
- Já fui várias vezes para o Rio assistir a jogos do Vasco, mas nunca passeei por lá. Eu não gosto daquele lugar, as pessoas são estranhas.
Fico em silêncio, evitando dar corda a uma conversa que continua não fazendo sentido. Estranhas são as pessoas que deliberadamente puxam assunto com pessoas estranhas numa segunda pela manhã. Estranhas são as pessoas que apoiam o Bolsonaro justificando que ele é um exemplo de político cristão. Estranhas são as pessoas que não gostam de azeitona. Estranhas são as pessoas que preferem qualquer super-herói ao Superman.
- Uma das vezes que fui até lá – ele continuou, para meu desespero – entrei numa padaria que parecia bacana, pedi um café e, depois de esperar por mais de trinta minutos, decidi reclamar. Você acredita que o garçom disse que apressado assim eu só podia ser de São Paulo mesmo?
- Hum.
- Sim, e a vez em que fui para o Rio assistir a um jogo sem comprar ingressos antes? Tive que me desdobrar para conseguir entrar naquele estádio.
Enquanto ele conta uma história interminável sobre como fraudou o sistema para entrar no estádio, eu penso seriamente em voltar a acreditar num deus estilo Velho Testamento apenas para ter a esperança de um novo dilúvio. Se bem que um apocalipse zumbi seria bem melhor. Inclusive não entendo qual terá sido o sentido da minha existência se eu morrer sem ter presenciado o apocalipse zumbi.
Esqueço que ele está falando comigo e coloco os fones novamente.
Tiro os fones de ouvido.
- Você já foi para a Argentina? Lá, sim, é um lugar organizado. Sabe por quê?
Decido ouvir o que virá a seguir. Porém, antes que ele continue, nós chegamos ao destino. Eu me despeço cordialmente e saio me dando conta de que talvez nunca descubra o porquê de a Argentina ser um lugar organizado para aquele estranho que me levou ao trabalho.
Coloco os fones de ouvido novamente.