segunda-feira, 5 de março de 2018

|::| Das sociabilidades

Tiro os fones de ouvido para entender o que ele está falando.

- Você assistiu ao clássico de ontem? – ele repete olhando para mim pelo retrovisor.

Como se já não bastasse estar interrompendo meu momento de solidão voluntária, ele ainda se atreve a me perguntar algo de que não entendo.

- Clássico?

- O jogo. Para que time você torce?

Ah, certo. Ele está falando de futebol, que obviamente é o primeiro assunto que você deseja discutir numa segunda cedo indo para o trabalho.

- Corinthians – respondo, consciente de que eu posso ter acabado de colocar a minha vida em risco. Observo a expressão nos olhos dele e respiro aliviado. Talvez ele seja corintiano também. – Não assisti ao clássico ontem, não – completo, voltando a colocar os fones de ouvido e olhando para o celular, tentando encerrar o assunto.

Tiro os fones de ouvido novamente.

- Sou vascaíno. Meu pai é do Maranhão e a minha mãe de Brasília.

- Ah, legal – respondo, percebendo que não vou me livrar tão fácil dessa interação social inesperada.

- Já fui várias vezes para o Rio assistir a jogos do Vasco, mas nunca passeei por lá. Eu não gosto daquele lugar, as pessoas são estranhas.

Fico em silêncio, evitando dar corda a uma conversa que continua não fazendo sentido. Estranhas são as pessoas que deliberadamente puxam assunto com pessoas estranhas numa segunda pela manhã. Estranhas são as pessoas que apoiam o Bolsonaro justificando que ele é um exemplo de político cristão. Estranhas são as pessoas que não gostam de azeitona. Estranhas são as pessoas que preferem qualquer super-herói ao Superman.

- Uma das vezes que fui até lá – ele continuou, para meu desespero – entrei numa padaria que parecia bacana, pedi um café e, depois de esperar por mais de trinta minutos, decidi reclamar. Você acredita que o garçom disse que apressado assim eu só podia ser de São Paulo mesmo?

- Hum.

- Sim, e a vez em que fui para o Rio assistir a um jogo sem comprar ingressos antes? Tive que me desdobrar para conseguir entrar naquele estádio.

Enquanto ele conta uma história interminável sobre como fraudou o sistema para entrar no estádio, eu penso seriamente em voltar a acreditar num deus estilo Velho Testamento apenas para ter a esperança de um novo dilúvio. Se bem que um apocalipse zumbi seria bem melhor. Inclusive não entendo qual terá sido o sentido da minha existência se eu morrer sem ter presenciado o apocalipse zumbi. 

Esqueço que ele está falando comigo e coloco os fones novamente.

Tiro os fones de ouvido.

- Você já foi para a Argentina? Lá, sim, é um lugar organizado. Sabe por quê?

Decido ouvir o que virá a seguir. Porém, antes que ele continue, nós chegamos ao destino. Eu me despeço cordialmente e saio me dando conta de que talvez nunca descubra o porquê de a Argentina ser um lugar organizado para aquele estranho que me levou ao trabalho. 

Coloco os fones de ouvido novamente.

2 comentários:

  1. O legal é que mesmo sendo um assunto aparentemente chato de se comentar, como esse acima, com sua maneira de se expressar, fica tão delicioso de ler! Fica sempre aquele gostinho de quero mais!!

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  2. Eu não gosto de azeitona!!!
    Mas, adorei o texto! Congrats!!!

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