domingo, 25 de setembro de 2011

|::| Da dificuldade de se escrever com outras cores

Acho que se pararmos diante de qualquer grupinho de pessoas conversando, veremos alguém se lamentando de como sua vida traz, repetidamente, as mesmas decepções e experiências não desejadas. Sabem aquele tipo que sempre teve chefes detestáveis, ou sempre teve as mesmas decepções em sua vida amorosa, ou sempre conhece o mesmo tipo de gente? Pois é, o engraçado é que há bilhões de seres humanos, infinitas situações e possibilidades de vida e ainda conseguimos, aparentemente, repetir experiências.

E daí, quando olho lá para trás, para a infância mesmo, quando os desenhos que eu pintava eram multicoloridos, e havia orgulho em ter uma caixa de lápis com centenas de cores, fico pensando nessa coisa doida de repetirmos experiências. Vejo que com o tempo eu mesmo fui escolhendo cores e aprendendo que a grama deve ser pintada de verde e o céu de azul. O que é diferente disso é errado, pois não se encaixa na forma como organizamos o mundo. Quanto a isso, alguns podem argumentar que é uma espécie de mal necessário, considerando que compartilhar de sistemas de classificação similares facilita a convivência e a vida em sociedade. Sim, facilita mesmo e não vejo problema algum nisso, exceto quando nesse processo de encaixe, em que somos "formados" de acordo com moldes pré-existentes, jogamos fora as outras cores. Desaprendemos como pintar a nossa vida com cores diferentes.

Cada um de nós carrega uma mente ensinável, que pode moldar e treinar conforme vive. Essa é uma verdade absolutamente incrível que, ao ser aceita e usada, pode provocar verdadeiras revoluções em nossa vida ao longo do tempo. Cada vez que repetimos ações e que reforçamos pensamentos, estamos pouco a pouco construindo os padrões de comportamento uma espécie de piloto automático para a nossa vida. Só que frequentemente esquecemos que se podemos criar, também podemos destruir, criar novos, alterar e assim por diante. No início, é apenas uma cor que nos parece fazer mais sentido na escrita de um episódio específico, mas com o tempo, o ambiente muda, a situação muda, o contexto muda e continuamos escrevendo com a mesma cor. E mais para frente, quase sempre, encontramo-nos reclamando daquilo que experimentamos na nossa vida, pouco cientes do trajeto que percorremos e da nossa responsabilidade na escrita da nossa história.

Não acho que em algum momento as mudanças serão mais fáceis. Escolher novas cores sempre produz momentos de desconforto. Estamos habituados a usar as mesmas cores na hora de pintar as nossas escolhas e sempre acharemos que estamos errando ao mudarmos. Isso se conseguirmos iniciar o processo de escolha de novas cores, porque o que acontece com mais frequência é nem pensarmos nessa possibilidade. Em alguns momentos, até veremos que algo está diferente, que a situação é nova e que há uma nova cor disponível, mas e a coragem para a mudança? Afinal, temos sempre a sensação de que já tentamos viver algo novo e mudar de vida, e sempre chegamos à conclusão descrente de que não há nada a fazer, pois as coisas são como são. Mas será que realmente estivemos alguma vez abertos à mudança? Ou estivemos sempre escrevendo e reescrevendo usando lápis das mesmas cores?

Há uma grande beleza em perceber que nenhuma cor precisa ser descartada, e que todas aquelas centenas de cores da infância sempre estiveram disponíveis a nós. Diante de cada nova situação, o que nos impede de procurar alternar ou adicionar cores que não estávamos usando anteriormente? O que nos impede de bagunçarmos os lápis e tentarmos escrever nossas histórias usando cores novas e variadas? O que nos impede é, simplesmente, o medo de correr o risco de nada mudar. E se o preço que pagaremos pela possibilidade de vermos que é possível viver o que realmente sonhamos é correr o risco de mantermos a vida que temos agora, então penso que vale a pena. Sim, vejo que vale bastante a pena.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

|::| Sobre a dor

E então nós vamos coletando experiências, presenciando acontecimentos, vivendo os nossos dias, e desfilando a nossa capacidade de sentir. Ao longo disso tudo, vamos transitando entre emoções e sentimentos. Hoje, partindo de tudo o que eu já vivi – e estou consciente de que é bem pouco – eu acredito que somos muito pouco lineares na forma como sentimos a vida. Em instantes viajamos por emoções opostas e contraditórias. A tristeza e a alegria, o amor e o ódio, a confiança e a insegurança, são opostos entre os quais oscilamos continuamente.

A nossa pequena consciência da interação complexa que se processa a todo momento entre nosso "mundo interior" e a leitura que fazemos do "mundo exterior", leva-nos a uma grande vulnerabilidade frente às sacudidas que as nossas emoções nos dão. Segundo a segundo estamos trabalhando as informações que captamos por todos os nossos sentidos e realizando agrupamentos, julgamentos e interpretações. Não acredito que haja qualquer experiência que fique gravada em nossa mente sem estar conectada a uma série de outras informações e experiências e sem que faça parte de uma rede de significados. O interessante é que essa nossa capacidade de processar, agrupar e julgar as coisas se desenrola automaticamente. Querendo ou não, tudo a que nos expusermos será encaixado e gravado em algum lugar de nossas memórias. Resta-nos entender em que medida podemos trabalhar as informações de forma a servirmos a escolhas conscientes.

Somos expostos a uma série de escolhas, às quais só estamos sensíveis à medida em que enxergamos as possibilidades que estão diante de nós. Ao experimentarmos tantas emoções e sentimentos diferentes ficamos conscientes de que podemos fazer algumas escolhas que nos levam a experimentar mais ou menos algumas emoções. Perceber isso traz, na minha opinião, alguns benefícios. Um deles é, para usar um linguajar bacana, o gerenciamento da dor. E por "dor" não estou me referindo à sensação física, mas a uma realidade psíquica, ao sofrimento emocional.

Não sei dizer o quanto cada um é mais ou menos tolerante ao sofrimento e à dor, mas a consciência de que temos a capacidade de reinterpretar acontecimentos talvez seja um caminho para gerenciarmos, mesmo que minimamente, a dor e o sofrimento. Quem sabe se cultivarmos essa capacidade possamos passar com mais leveza e equilíbrio pelos tantos momentos de decepção, frustração e dor que passaremos ao longo da vida?



quinta-feira, 15 de setembro de 2011

|::| Deste quebra-cabeças

Às vezes me sinto montando um quebra-cabeças com a minha vida. Procurando pelas peças que faltam, pelas peças que se encaixam e por aquelas que irão completar blocos de sentido, formando um todo integrado, coerente, inteligível.

De vez em quando, passo meu tempo a procurar peças que se encaixem umas nas outras. Esses são os momentos em que quero dar sentido ao que experimento ao longo dos dias. Procuro partes de mim que juntas podem me trazer um pouco mais de tranquilidade, de serenidade. Na maioria das vezes, não encontro tantas quanto gostaria e passo ao drama de forçar o encaixe e de me fazer acreditar que as coisas estão de acordo com o que quero. No fim, a sensação é de que estou trapaceando no jogo de montar quebra-cabeças, tentando distorcer as peças a ponto de fazer com que peças se encaixem onde não deveriam se encaixar. E às vezes, por incrível que pareça, faço isso muito bem.

O trabalho de dar novo significado às experiências, histórias e fatos do dia a dia, que talvez seja realmente trapacear, alterando o formato das peças, não deixa de ser necessário. Afinal, creio que não seja apenas eu a colecionar episódios desagradáveis, que a princípio gostaria de esquecer, mas que não sendo esquecidos, são alterados, digeridos e vomitados num outro formato, tomando também sua parte, junto a outras pecinhas, na construção de mim mesmo.

Algumas vezes, peças que pareciam estar encaixadas, como que por mágica, tornam-se completamente desencaixadas e por mais que eu tente devolvê-las à sua posição original, não consigo e acabam no amontoado de peças com que lidarei depois. Nesse amontoado estão as peças abandonadas, ou por não fazerem mais sentido no todo, ou por nunca terem realmente feito sentido, ou porque ainda não sei onde colocá-las.

Há vezes em que sonho que nessa de montar meu quebra-cabeças, vejo peças novas surgindo. Nunca param de surgir. Peças vão se acumulando ao meu redor. Algumas delas tomam o lugar de peças que já estavam encaixadas e há outras que ao surgirem perturbam o encaixe de todas as outras peças, obrigando-me a começar a montar tudo de novo. Os sentidos, os significados, as histórias, os julgamentos, tudo, tudo precisa ser refeito.

Eu sei que poderia escolher ficar apenas com o pedaço que já foi montado, mas quando olho para os lados e vejo tantas outras peças ainda soltas, dispersas ou amontoadas, fico incomodado e curioso para descobrir que imagens e experiências elas compõem, e a que vida serei apresentado no momento em que as novas peças forem encaixadas. Mais de uma vez me vejo tendo que abandonar um pedaço e começar do zero um outro, com novas peças e novos encaixes.

Não posso reclamar. Gosto do que vejo e gosto de me ver diante de tantas peças, cada uma delas carregando em si a possibilidade de fazer com que o quebra-cabeças da minha história seja mais interessante, mais rico, mais cheio de vida. Já não acredito que um dia terminarei esse trabalho, mas, de certa forma, isso é tranquilizador.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

|::| Do transporte coletivo

Eu sempre disse que usar o transporte público é uma experiência antropológica riquíssima, mas hoje irei um pouco além e direi que usar o transporte público é uma experiência transcendental, um pré-requisito para a iluminação e uma etapa crucial para o entendimento de tudo o que há e mais um pouco. Alcancei essa compreensão enquanto eu me misturava ao TODO nesta manhã.


Acordei feliz, ao som de passarinhos cantando e as folhas das árvores balançando lá fora, movidas por uma brisa suave que carregava aromas restauradores da natureza. (Aham, senta lá, Cláudia). Na verdade, acordei ao som de sirenes de ambulância e buzinas, sentindo meu nariz coçar devido ao ar poluído de São Paulo. Saí de casa e me dirigi à estação de metrô mais próxima.


Cheguei à plataforma e, como de costume, a aglomeração estava grande. Após vários minutos parado no meio da multidão, sentindo-me parte de algo mais, algo maior, fenômeno tão bem explicado por Durkheim, fui sendo pouco a pouco levado para mais perto de conseguir entrar no vagão. Até que finalmente fui introduzido no metrô, carregado pela massa. Não que eu não quisesse entrar no vagão, e na verdade, esse era o meu objetivo, é claro, mas fazê-lo de forma tão... suave, fez com que a minha felicidade se intensificasse sobremaneira. A sensação de ser levado, como que flutuando, seria excelente caso não fosse acompanhada de forte sufoco, provocado não apenas pelo aperto, mas por aqueles inúmeros odores tão interessantes da manhã.


E sempre tem alguém mais..., como posso dizer..., comunicativo, que gosta de interagir e que cria diálogos inesquecíveis por sua objetividade simpática, abordando as pessoas à sua volta:


- Amigo, sabe aquele arroz que você comeu ontem no jantar, bem refogado, carregado de alho e cebola?

- Sei.

- Gostoso, né?

- Sim. Muito.

- Então, fica ainda mais gostoso se agora você fechar os olhos, pensar no arroz e segurar a sua respiração!


- Senhora, posso fazer uma pergunta?

- Sim, meu filho.

- Que perfume é esse que está usando?

- Ah, nenhum. Só o desodorante mesmo.

- Percebi.

- Que era meu desodorante?

- Sim, percebi tão bem que até detectei a data de validade dele.

- Ahn?

- Sabia que desodorantes vencem?


Os odores seriam os protagonistas do espetacular ato de usar o transporte público, caso não houvesse algo muito superior: a comprovação de que – pasmem! – SIM, é possível dois corpos ocuparem o mesmo espaço! Incrível, né? Séculos de mentes brilhantes debruçadas sobre os mistérios da física e em instantes todas as suas teorias são jogadas por terra...


O interessante é que em meio a tudo isso, descobri que posso atingir estágios superiores de percepção da realidade. Tudo é, mesmo, uma questão de perspectiva. Posso fechar os olhos ver que estou numa balada, gastando apenas poucos reais. Posso ser uma estrela do rock, recebendo o carinho de centenas de fãs enlouquecidos tentando me abraçar. Posso ser cobaia de uma experiência científica altamente avançada que fará com que o conhecimento e as capacidades de todas aquelas pessoas passem para mim.


E enquanto distorço a realidade, chego ao meu destino, saio do trem, e me dirijo ao prédio em que trabalho, preparado para pegar um elevador. Lotado!

domingo, 11 de setembro de 2011

|::| Dos tantos rascunhos

Segura o celular com a mão esquerda enquanto o movimento lento e indeciso da direita revela sua ansiedade. Ele experimenta seu momento mais ambíguo, vendo diante de si uma série de possibilidades às quais estivera, por tanto tempo, cego. Desta vez não se trata apenas de seguir um caminho ou não, mas de escolher como e em que momento chegar aonde quer. Como de costume, é movido por seu defeito mais persistente e perigoso: tentar com todas as suas forças ser o que julga dever ser, mesmo acreditando que está longe daquilo que acredita ser seu caminho.

Aguarda um pouco mais, pensando que talvez o aparelho toque antes, tirando dele a responsabilidade por suas escolhas. Verifica, mais uma vez, se recebeu algo, uma mensagem, um recado. Nada. Sem mensagens, sem recados na caixa postal. Sem ligações perdidas. Apenas um amontoado de rascunhos. De tentativas. De escolhas abortadas.

Não sabe que cada vez que não escolhe, está, ainda assim, fazendo uma escolha. E vai afastando de si, pouco a pouco, com uma certa elegância dolorosa, a possibilidade de descobrir que está todo errado. E como ele saberia disso se tudo o que vê é uma história cheia de expectativas frustradas? Talvez o segredo seja aceitar que há nada a esperar, embora espere e queira muito.

Enxerga bem as regras, mas não entende que quem as criou pode mudá-las, a qualquer momento, alterando a ordem das coisas e o sentido dos caminhos. A ele cabe apenas a responsabilidade por seus atos, nada mais, nada menos. Nunca poderá ser culpado pelas escolhas dos outros, embora eventualmente, talvez sem perceber, assuma esse peso como forma de evitar uma nova frustração.

Há limites para as tentativas que se faz ao longo de tantos anos na busca por calar o som desse vazio que ele sente tão bem? Existe alguma regra que defina até onde se deva ir na busca da realização daquilo que se é?

Talvez haja a sensação de que nada, nunca, tenha sido algo mais do que um rascunho, do que um projeto frustrado. Mas o que possivelmente não esteja claro é que em algum momento, perdido entre tantos rascunhos, possa surgir o início do desenho da vida com que ele sonhou.

O celular toca. Ele sabe como atender?